segunda-feira, 9 de julho de 2012



Quem é o inimigo?




Andityas Soares de Moura Costa Matos



Há não muitos anos atrás, as esquerdas protestavam contra o Estado, encarando-o como o grande inimigo a ser vencido. Ainda que alguns pensadores mais refinados como Antonio Gramsci indicassem a necessidade de se tomar o Estado “por dentro” mediante uma “guerra de posições”, o pensamento marxista ortodoxo sempre viu o Estado enquanto um mecanismo de opressão capitalista cujo destino final é ser superado pelo comunismo. Os recentes acontecimentos na história mundial demonstram a inadequação dessa avaliação. Na Grécia e, em maior ou menor grau, na Europa como um todo, assiste-se não à destruição do Estado, mas à sua transformação em menino de recados do grande capital internacional. Os planos de salvação econômica impostos à população europeia demonstram que o inimigo a ser vencido hoje já não é o Estado e sim o capital especulativo apátrida. Uma sociedade é política, ensina Carl Schmitt, quando consegue definir com clareza quem é seu inimigo. Nestes nossos tempos sombrios de desregulamentação econômica e corte de direitos sociais, a imposição de cartilhas de austeridade por mecanismos semi-autônomos como o Banco Central Europeu demonstra que a divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos deixou de fazer sentido. Todos os Estados se submetem à vontade privada da especulação, realizando o antigo sonho da Escola de Chicago. Seu principal guru – o economista Milton Friedman – dizia que as decisões de política econômica deveriam ser “técnicas” e caber a entidades independentes do “corrupto e lento” poder político-estatal. Segundo Friedman, seria necessário tornar os Bancos Centrais independentes do controle do Estado. É claro, isso só pode significar que as decisões econômicas são importantes demais para serem tomadas por órgãos de representação popular, ou seja, os parlamentos democraticamente eleitos. Trata-se de um verdadeiro “golpe de Estado sem Estado”, inevitável diante da histórica incapacidade dos parlamentos de efetivamente representarem as pessoas que os elegeram, justificando-se assim a captura de espaços públicos de decisão por entidades “técnicas” e “neutras”. Diante da clara ilegitimidade dos parlamentos, parece que a única solução para o enfrentamento da “crise” passa pela retomada do poder político pelo povo, o que exige a mobilização efetiva e concreta em torno de um inimigo bem definido: o capital especulativo. Quando as pessoas ocupam as ruas para protestar contra o 1% de plutocratas que detêm a maioria da riqueza mundial, isso não é um sinal de crise, mas de saúde política. Somente uma retomada dos espaços de decisão pelo povo – o que não significa fazer reviver estruturas fortes de Estado e muito menos dispositivos de mediação parlamentar – pode representar uma verdadeira saída para o estado de exceção econômico em que sobrevivemos.



Artigo de opinião publicado no jornal HOJE EM DIA, Belo Horizonte, 09.07.2012.



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Estado de exceção e democracia




Andityas Soares de Moura Costa Matos

Doutor em Direito e Professor de Filosofia do Direito na UFMG



Tradicionalmente, a expressão “estado de exceção” designa a provisória suspensão da Constituição em sua inteireza ou em pontos de grande importância, como, por exemplo, os direitos e garantias fundamentais, sendo instaurado quando ocorrem circunstâncias anormais, graves e imprevisíveis que ameaçam a estrutura do Estado de Direito e, por isso, determinam a concentração de poderes, normalmente junto ao Executivo, para a normalização da situação. Com base nessa ideia, as teorias tradicionais tendem a identificar o estado de exceção com a ditadura e, assim, opô-lo à democracia, como se fossem duas realidades diversas. Todavia, esse é um grave erro por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar porque é possível a existência de um Estado democrático ditatorial, como o prova a experiência do III Reich Alemão. De fato, se a ideia de democracia for restrita à identificação do governante com os governados, traduzindo-se em mera contagem de votos, sem qualquer qualificação mais profunda, muitos dos regimes políticos autoritários do planeta podem ser considerados “democráticos”.Em segundo lugar, e isso nos parece mais importante, é preciso perceber que exceção e democracia não são realidades opostas. Em sua obra Estado de Exceção, o filósofo italiano Giorgio Agamben demonstrou que a exceção autoritária não é uma espécie de negação do Estado Democrático de Direito. Ao contrário, a exceção habita dentro da democracia e do Estado de Direito, motivo pelo qual é mais correto falarmos em espaços de exceção. Tal percepção é preciosa porque nos permite refletir sobre nossas práticas político-jurídicas cotidianas para nelas descobrir camadas de autoritarismo que, à primeira vista, parecem alheias e inexplicáveis. Somente uma leitura crítica de nossa vivência social pode evidenciar que, não obstante a perfeição e a beleza dos enunciados normativos da Constituição de 1988, nossa democracia se construiu tendo em vista uma tradição autoritária, a qual não desaparece da noite para o dia simplesmente porque mudamos nossas leis e governantes. Assim, uma das principais tarefas do jurista consiste em denunciar os espaços de exceção que parasitam o cenário político-jurídico nacional. Três exemplos demonstram que, efetivamente, o estado de exceção habita o corpo do Estado democrático brasileiro. Basta nos lembrarmos da violenta desocupação de Pinheirinhos em São Paulo, da proibição, em várias cidades do país, da marcha da Maconha e, finalmente, da famigerada Lei Geral da Copa, que suspende diversas normas jurídicas brasileiras (Lei de Licitações, Código de Defesa do Consumidor etc.) para possibilitar a realização de evento futebolístico conforme a vontade “soberana” da FIFA. Nesses três exemplos percebemos situações em que a cidadãos brasileiros são negados direitos básicos, tais como moradia, devido processo legal e liberdade de expressão. Tais atos denegatórios de direitos não são, conforme seus idealizadores, “ilegais”, mas plenamente “democráticos”, eis que seguiram certos procedimentos e regras do ordenamento jurídico nacional. No entanto, isso só significa que um sistema jurídico democrático pode ser facilmente utilizado para a realização de propósitos autoritários. Daí a necessidade de confrontarmos toda nossa tradição mediante uma verdadeira epoché política – ou seja, uma suspensão de todos os juízos dados e herdados – e assim deixarmos de nos esconder sob as fórmulas fáceis do politicamente correto e do “democrático”.