sábado, 10 de dezembro de 2011

LANÇAMENTO: CONTRA O ABSOLUTO - Livro com artigos inéditos de Hans Kelsen



SINOPSE
Quem quer que se debruce sobre o pensamento jurídico contemporâneo, com suas múltiplas escolas e correntes, poderá concluir, sem medo de erro, que Kelsen é o pensador central da Filosofia do Direito de nossa época. A favor de Kelsen ou contra Kelsen, ele foi o marco divisório de uma quantidade significativa de juristas que tiverem de iniciar suas trajetórias posicionando-se com relação às ideias do mestre de Viena. Poucos autores tiverem a influência global de Kelsen, traduzido do Japão ao Brasil, em uma quantidade enorme de idiomas, atestando a possibilidade de um projeto de Teoria Geral do Direito. Que sua obra ocupe tal centralidade nem sempre lhe foi favorável. No centro de grandes polêmicas, Kelsen foi mais hostilizado ou reverenciado do que compreendido. A presente coletânea, que enfoca as diferentes dimensões do combate kelseniano contra os absolutismos filosóficos, jurídicos e políticos de sua época, demonstra a vitalidade de uma obra que não se esquivou diante dos grandes dramas humanos do terrível século XX. Revisitando tais dimensões, constatamos que, afinal, o mestre do relativismo nunca se furtou de nos oferecer, corajosamente, a sua verdade, mesmo sabendo do caráter relativo, contingente e provisório de todas as verdades. Há um movimento internacional de retomada do pensar kelseniano cujo marco é a progressiva publicação de suas obras completas na Alemanha, projeto atualmente em curso sob os auspícios do Instituto Hans Kelsen de Viena. A presente coletânea vem se somar a esses esforços, pretendendo contribuir para a discussão profunda e transdisciplinar da obra kelseniana. Para tanto, são apresentados pela primeira vez em língua portuguesa dois trabalhos de Kelsen de capital relevância para a construção do seu pensamento – Deus e Estado e A Alma e o Direito –, além de quinze artigos de especialistas da Áustria, Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, Itália e México que procuram restituir à tradição kelseniana toda a dignidade política e filosófica que merece aquele que é considerado, com toda justiça, o mais importante jurista do século XX.

Arnaldo Bastos Santos Neto

Há muito tempo a sombra dos clássicos caiu sobre Hans Kelsen. Isso quer dizer que suas obras já não são lidas, pois se transformaram em alvos de infindáveis controvérsias patrocinadas ora por críticos desonestos e ora por servis reprodutores de suas ideias. Todavia, nenhum desses dois grupos é capaz de trazer à luz a verdadeira face de Kelsen, que não é aquela da Teoria Pura do Direito, sua criação intelectual mais conhecida e hoje injustamente atacada. O que os inimigos e os bajuladores de Kelsen não podem suportar é o fato de que, além de ter sido um grande jurista – responsável pela criação de uma verdadeira ciência jurídica, passo que, com todos seus percalços, pôde garantir a passagem do Direito de um âmbito que chamaríamos de “alquímico” para outro de inspiração “química” – e um competente profissional do direito – Kelsen criou o sistema de controle concentrado de constitucionalidade, tendo atuado como juiz constitucional na Áustria por quase uma década –, Kelsen foi também um dos maiores filósofos do direito do século XX, como esta coletânea pretende demonstrar. Há um projeto consciente de negação do título de jusfilósofo a Kelsen. De fato, seria escandaloso contar um relativista nato entre os cultores dessa disciplina sempre comprometida com o absoluto. Mas a verdade não pode ser negada. Kelsen é sim um filósofo, e mais, um que se inscreve na rica tradição de pensadores realistas como Maquiavel, Hobbes, Freud e Luhmann, autores que tentaram nos fazer ver o que é o mundo e o homem para além dos símbolos que lhes dão significado. Contudo, o pessimismo antropológico de Kelsen jamais se converte em inação. Armado com a firme crença na relatividade de todas as coisas – até mesmo na relatividade desta afirmação –, Kelsen constrói com sua obra uma profunda, original e imprescindível defesa da democracia, entendida como arquitetura em movimento cujos vértices são a diferença e o dissenso, antecipando assim temas e problemas próprios de um mundo fraturado e policêntrico como o nosso. Na sua Política (1261a) Aristóteles já notara a tendência totalizante presente em certos filósofos que, tal como Platão – e, acrescentaríamos nós, Hegel e Schmitt –, tratam a pólis como oikía, ou seja, tentam centralizar a vivência pública nas decisões unipessoais de um despótes ou dominus, anulando dessa maneira a possibilidade de o démos se estruturar na arena dos debates. Pensadores assim objetivam antepor à política uma mera economia (oikonomía) dos corpos e afazeres humanos. Na contramão dessa corrente, Kelsen aposta no espaço do discurso legitimamente político. A democracia se converte então em perene obra crítica cuja função é não permitir que sejamos subjugados pelos absolutos que nos ameaçam dia-a-dia, sejam chamados de Deus, Estado, Direito Natural, Mercado ou qualquer outra palavra com inicial maiúscula.

Andityas Soares de Moura Costa Matos

SUMÁRIO DA OBRA

I CONTRA OS DEUSES: KELSEN POR ELE MESMO
· Hans Kelsen, Vida e Obra - Robert Walter
· Deus e Estado - Hans Kelsen
· A Alma e o Direito - Hans Kelsen
II CONTRA O TOTALITARISMO: KELSEN E A POLÍTICA
· Kelsen Contra o Estado - Andityas Soares de Moura Costa Matos
· Democracia, Relativismo e Identidade Política em Hans Kelsen e Carl Schmitt - Bernardo Ferreira
· Entre Liberalismo e Social-Democracia: Pressupostos Políticos da Obra de Hans Kelsen - Carlos Magno Spricigo Venerio
· Kelsen e Gramsci: Eficácia do Direito e Hegemonia Política - Óscar Correas Vásquez
III CONTRA A IDEOLOGIA: KELSEN E A CIÊNCIA DO DIREITO
· Quatro Temas Kelsenianos - Bruno Celano
· É Possível ser Antikelseniano sem Mentir sobre Kelsen? - Juan Antonio García Amado
· A Reconstrução Radical da Norma Jurídica de Hans Kelsen - Stanley L. Paulson
· Onde está o Direito? Pluralismos Jurídicos e Conceitos de Direito: Reflexões Segundo o Pensamento Kelseniano - Susanna Pozzolo
IV CONTRA OS DONOS DO PODER: KELSEN E O DIREITO INTERNACIONAL
· Ideal Humano e Consolidação da Paz - Clemens Jabloner
· O Globalismo Judicial de Hans Kelsen - Danilo Zolo
· Guerra, Paz e Direito Internacional em Kelsen - Tecla Mazzarese
V CONTRA O LEGALISMO: KELSEN E A HERMENÊUTICA JURÍDICA
· A Teoria da Interpretação em Hans Kelsen - Arnaldo Bastos Santos Neto
· Interpretação como Ato de Conhecimento e Interpretação como Ato de Vontade: a Tese Kelseniana da Interpretação Autêntica - Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
· A Criação do Direito pela Jurisprudência: Notas sobre a Aplicação do Direito e a Epistemologia na Teoria Pura do Direito - Thomas da Rosa de Bustamante

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Resenha de ALGO INDECIFRAVELMENTE VELOZ por Fábio Lucas


O LONGO PERCURSO DE ANDITYAS SOARES DE MOURA

Quantas vezes tenho voltado a Algo Indecifravelmente Veloz - Antologia Poética de Andithyas Soares de Moura (S. Mamede de Infesta, Edium Editores, 2007)? Sempre no intuito de compreender os poemas perpassa¬dos pela cultura Clássica, com seus versos raros, de musicalidade pró¬pria, de lirismo denso, de ambientes arcaico-modernos.
Lêem-se, com as palavras do poeta,os surtos do despertar da Lín-gua Portuguesa, tendo o autor ousa-do expressões galegas ou medievais, no sen¬tido de carregar os po¬emas das remissões de momentos áureos da atmosfera lírica. Por mais ingênuos pare¬çam os cantos, com suas anáforas, seus rondós, repetições, mais transmitem a es-sência da criação poé¬tica, a recolher nos ver¬sos a síntese das pai¬xões humanas. Trazem a inocência e o frescor da infância cul¬tural do ser humano.
E como o faz o poeta Andithyas Soares de Moura, inspirado tradutor e erudito ensaísta. Há trechos da Antologia em que o leitor se concentra e tem a noção veloz da eternidade da poesia. Desde os albores, até hoje, o que se buscam são respostas às perguntas acerca do enigma da condição humana. A qualidade polissêmica dos signos, a cogitação profunda acerca das circunstâncias dos dias, a complexidade sem termo da men¬te, a articulação insofrida ao redor da consciência da morte, os apelos energéticos do amor e da vida, tudo se aglutina para que a linguagem da beleza estética acuda às exigências existenciais e às intencionalidades do espírito. Trata-se de buscar a paz na guerra dos motivos pessoais e coleti-vos. Ou, talvez, definir o território da poesia no qual se lavam as carênci¬as e inibições.
O lado aparentemente poliglota do poeta, artesão caprichoso, conglo¬mera reminiscências do ser profun¬do do Ocidente: ditos latinos, epítetos galaico-portugueses, glosas castelhanas, radicais gregos, monumentalização dos temas, mitificação do pobre cotidiano.

É na última cláusula que o passado remoto se remoça e perfila as flores do mal com que Baudelaire atualizou a herança e deu ao dia-a-dia urbano o aroma da poesia. Andithyas não foge aos temas da modernidade por amor do antigo. Vejamos parcela do poema "Caminho da mãe" em que o tom confessional guarda as alturas das conexões culturais: "Não nos fa-lamos muito.! Nos jardins de Minas/ -agreste Minas onde/ mamãe me pa¬riu - / se ensina que a palavra! só não vira equívoco/ quando é pouca! e sussurrada." (ob. cit., p. 125).
É largo o repertorio da Antologia. Eis que se abre aos olhos do bom leitor a pa¬ródia audaz de uma Cantiga D'Amigo: "Em Romaria, Rumo à Ermida de Mestre Requeixo.» Fervente declara¬ção de amor na voz femini¬na. A que se segue, na cole-tânea de Andithyas Soares de Moura, a ingênua "Troba D'Or» armada em cinco subtextos. E na seguinte co-leção de inéditos (daquela pu¬blicação de 2007), o poeta tem artes de glosar em ter¬mos arcádicos a bela "Canção do Pastor», modernizada pelo andante de Mozart e pelo erotismo descritivo. E a Grécia se insinua na «Inscrição Funerária Órfica» (ob. cit., p. 142).
São inúmeras as opções de leitura. Exemplo: "0 Evangelho de Judas" e, adiante, a "Elegia a William Blake". E os títulos não correspondentes dos textos ("Sinos", "Houve tro¬voada", etc)? E os (sub) poemas à direita do texto impresso? E as dores do mundo a florir por entre as péta¬las, os cães e os cavalos? E a originalidade das metáforas? E o simbolismo oculto? E os títulos de gramaticalidade duvidosa ("Raposamente") ou de puro conteú¬do poético: "Anos y anos trabajé para hacerte/ antes de oír un solo sonido de tu alma"? E a arte da não-poesia:
"Língua do Fogo. do Não"?
Do poeta Andithyas muitos são os caminhos. A sua Antologia trans-pira as encruzilhadas da Literatura hodierna, um verdadeiro arco-íris a ligar a aurora ao crepúsculo. Uma tra-ma da Vida com a Morte, fragmentos de uma totalidade perdida.

Fábio Lucas é membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Mineira de Letras.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

RESENHA SOBRE A CORRESPONDÊNCIA COMPLETA DE RIMBAUD



Abandonado pelo universo


CorrespondênciaArthur Rimbaud
Trad., notas e comentários: Ivo Barroso
Topbooks
476 págs.


Finalmente temos o terceiro e último volume das obras completas de Arthur Rimbaud, preparadas e traduzidas por Ivo Barroso, responsável por outras competentes transposições de clássicos para a nossa língua, tais como Shakespeare, Blake, Poe, Eliot e Strindberg. Aqueles que aguardavam já sem muita esperança a Correspondência de Rimbaud — que fecha a trilogia iniciada anos atrás com o volume I, Poesia completa, e o volume II, Prosa poética — sentirão que valeu a pena esperar. O volume ora editado é bem cuidado, ricamente ilustrado com desenhos de Rimbaud e de seus companheiros, além de fotos e mapas que nos fazem sentir um pouco do inferno que foram seus últimos anos de auto-exílio na África. Sem longas e tediosas introduções, a Correspondência inicia-se com o que interessa: as cartas literárias de Rimbaud, sempre acompanhadas de incisivos comentários de Ivo Barroso, postados à testa das missivas mais importantes e que, juntos, bem poderiam valer por uma biografia do poeta, trazendo-nos dados factuais e interpretativos da maior importância para a compreensão do contexto de cada carta.

Muitas delas soariam enigmáticas caso não fossem esclarecidas as condições de sua composição e os personagens que nelas gravitam. A tarefa de decifração da correspondência de Rimbaud é levada a efeito pelo tradutor sem enfastiar o leitor com acúmulo de dados, sem julgá-lo um idiota a quem tudo deve ser explicado, mas também sabendo-o não-especialista, razão pela qual fornece as chaves para interpretar não os textos, mas a vida de um dos personagens mais contraditórios da história da literatura. E tudo isso com a prosa elegante que marca entre nós a escrita de Ivo Barroso.

O que mais importa no livro são as primeiras 120 páginas, as cartas propriamente literárias do jovem poeta em que percebemos o intenso processo de formação a que se submeteu. A maioria dessas cartas apresenta registro extremamente irônico, todas são saborosas e muito bem escritas, ainda que contenham um punhado de neologismos, barbarismos e erros intencionais próprios da expressividade alucinada de Rimbaud. Nelas vemos se desenrolar a etapa inicial de seu drama. Se em um primeiro momento o poeta comparece de forma servil diante de Thédore Banville, editor da revista Parnasse Contemporain, implorando atenção e a publicação de seus versos (“Caro Mestre, ajude-me: Levanta-me um pouco: sou jovem: estenda-me a mão…”, carta de 24 de maio 1870), em pouquíssimo tempo Rimbaud, mergulhado em si mesmo, descrê da literatura de confete que se fazia em França e traça para si um destino literário único, inclassificável entre os decadentistas, simbolistas ou parnasianos que o rodeavam, o que não deixa de ser escandaloso para um francês, que, como bem disse Borges, quando escreve, escreve tendo em vista a sua futura inserção na história da literatura do país:

El defecto más constante de las letras francesas o, si se quiere, el carácter de esta literatura que puede muy fácilmente confundir a un extrangero, es la ansiedade cronológica e histórica de sus escritores. Demasiado modestos para considerar-se otra cosa que meros momentos posibles o necesarios de una evolución, demasiado lúcidos para no saber exactamente lo que emprenden, nunca se ven sub specie aeternitatis, siempre sub specie temporis vel historiae. Tratan, o bien de continuar una tradición o bien de contradecirla a sabiendas.

Pois bem, a partir da famosa “carta do vidente” (15 de maio de 1871), Rimbaud escapa desse joguinho que até hoje — principalmente hoje — mobiliza os literatos, e agora não só os franceses. Nesse documento fundamental Rimbaud traça seu método, consistente em

(…) um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, — e o Sabedor supremo! — pois alcança o insabido.

Neste credo poético-alquímico — notemos o uso maciço de expressões da alquimia (venenos, quintessência, Sabedor supremo, insabido etc.), desde sempre identificada com a mais alta poesia —, sentimos ressonâncias anteriores, improváveis, que remetem a William Blake. Em um dos seus provérbios do inferno, ele nos ensina que nunca saberemos o que é suficiente se não soubermos antes o que é demasiado. Outro provérbio rimbaudiano, isto é, do inferno: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”. Ressonâncias posteriores há muitas. Todo poeta que se preze já se pretendeu, ou é, vidente. Lembremo-nos apenas de Jim Morrison, genial vocalista e letrista do The Doors, que tinha o desregramento por regra e não à toa era um apaixonado pela poesia de Rimbaud.

Ponto alto
A carta do vidente, ponto alto da Correspondência, é decisiva a vários títulos. Nela se entremostra o senso crítico e anti-histórico de Rimbaud, sua convivência agressiva com a palavra que o leva a buscar uma linguagem universal, pretensão capaz de ligá-lo a Walter Benjamin — que via cada tradução como um pequeno passo rumo à linguagem total pré-babélica — e a Jorge Luis Borges, que encontra no aleph, a primeira letra do alfabeto hebraico, toda a realidade real e imaginável, e por isso mesmo o abandona aterrorizado, como prevê Rimbaud: “— Afinal, como toda palavra é idéia, a linguagem universal há de chegar um dia. (…) Os fracos que se pusessem a pensar sobre a primeira letra do alfabeto poderiam rapidamente mergulhar na loucura”. Perfeitamente consciente de seu involuntário destino, Rimbaud reconhece serem enormes os sofrimentos pelos quais passará — premonição do Gólgota africano? —, mas ainda assim acrescenta: “(…) é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta. Não é de fato culpa minha. É falso dizer: Eu penso: devíamos dizer: pensam-me” (13 de maio de 1871).

Claro, a vidência a que se refere Rimbaud é poética, tratando-se de uma espécie de visão total das coisas, imediata, própria de deus, tal como descrita por Irineu, citado por Borges: “Aeternitas est merum hodie, est inmediata et lucida fruitio rerum infinitarum”. A vidência não se resolve como antecipação de fatos e eventos, eis que, para um poeta do porte de Rimbaud, o tempo é artifício intrinsecamente falso. O que não o impediu de, em certas ocasiões estranhas, prever o seu futuro sombrio que, como se sabe, seria de abandono total da literatura e de desterro auto-imposto na África, onde se torna comerciante e traficante de armas, vivendo em infernos de areia, de vento e de temperaturas que podiam chegar aos 60 graus, atormentado por manias, neuroses e a ganância que o leva a atar na cintura oito quilos de moedas, o que, anota placidamente em uma carta à família, “me causa disenteria” (23 de agosto de 1887). Mas não só disenteria. Devido aos excessos na África — Rimbaud sempre será um homem de excessos, isso jamais mudará —, o ex-poeta desenvolverá ósseo-carcinoma, vindo a falecer em 10 de dezembro de 1891, totalmente devastado, com a perna amputada e o corpo paralisado, após as mais terríveis agonias, descritas de modo comovente pela irmã Isabelle nas cartas reunidas pelo tradutor no Anexo III do volume. Isabelle acompanhou o irmão em sua derradeira estadia no inferno, vendo-o tornar-se um ser quase imaterial, destroçado, esvaziado pela dor (28 de outubro de 1891). Nós, leitores, sabendo de antemão o que aguardava Rimbaud no hospital de Marselha, não podemos deixar de nos perturbar lendo sua carta de junho de 1872, destinada ao fiel amigo Ernest Delahaye: “Tenho uma sede de temer gangrena”. E depois, nas cartas da agonia, a descrição espasmódica, auto-irônica — ecos do antigo poeta? — e detalhada das torturas pelas quais passava: “Hoje faz quinze noites que não consigo pregar olho um só minuto, por causa das dores nesta maldita perna” (20 de fevereiro de 1891). “Virei um esqueleto: dou até medo. Minhas costas estão esfoladas por causa da cama; não consigo dormir um só minuto. E o calor aqui está cada vez mais forte” (30 de abril de 1891). “Adeus casamento, adeus família, adeus futuro! Minha vida acabou, não passo de um troço imóvel” (10 de julho de 1891). “Eis o belo resultado: (…) Tremes ao ver os objetos e as pessoas se moverem à tua volta, com medo de que te derrubem e te arranquem a outra pata. Riem-se ao ver-te saltitar. Ao te sentares, tuas mãos estão enfraquecidas, as axilas esfoladas e tens um aspecto de imbecil. O desespero toma conta de ti e permaneces sentado como um impotente completo, choramingando e esperando a noite, que te trará de novo a insônia perpétua, até chegar a manhã mais triste do que a véspera, etc., etc.” (15 de julho de 1891).

A maior parte da Correspondência foi escrita na África. As missivas que de lá Rimbaud enviou à família são muito diferentes das brilhantes cartas literárias, limitando-se a meras descrições dos locais em que esteve e de seus negócios, sempre demandando livros técnicos de metalurgia e disciplinas afins, além de materiais, roupas e outros objetos que lhe faltavam no deserto. O leitor pode se desanimar de enfrentar todo esse material opaco, convencido de que o poeta Rimbaud morreu em Charleville após terminar Uma estadia no inferno e As iluminações. Mas esta seria uma postura comodista e, como tal, equivocada. Henry Miller, autor de um polêmico e imprescindível ensaio sobre Rimbaud, assevera que para se avaliar a importância do poeta é preciso ler suas cartas africanas e se perguntar por que um homem de gênio como ele se encerrou num buraco onde se retorcia e ia sendo, pouco a pouco, assado. Acompanhar a transformação repentina de uma alma, conhecer as pequenas e as grandes misérias que Rimbaud viu nos desertos — onde se habituou “a viver de cansaço” (25 de maio de 1881) —, perceber como crescem a sua cupidez e os seus medos mais profundos — antes enfrentados com poesia e, na África, com francos-ouro — é, efetivamente, passar uma temporada no inferno para descobrir que as cartas de Rimbaud denunciam não apenas a formação de um homem, mas principalmente a sua deformação. E encontrar ecos-videntes entre o jovem poeta e o negociante de armas. Ao contrário do que pensam muitos biógrafos, as preocupações financeiras sempre importunaram Rimbaud. Não se trata de uma demanda mental nascida na África. Em várias de suas cartas literárias ele reclama da falta de recursos, o que não lhe permitia enviar aos amigos envelopes mais pesados e com mais poemas. Já em 28 de agosto de 1871, o poeta se dirige a um indiferente Paul Demeny para pedir emprego em Paris, ainda que seja como operário a 15 soldos por dia. O dinheiro, para Rimbaud, talvez tivesse função libertadora, ele que, por mais livre que fosse em seu mundo psíquico e estético, estava economicamente preso à insossa província francesa, à mãe religiosa e autoritária, a um destino rural e medíocre. Da mesma forma, a obsessão do amputado Rimbaud de escapar ao serviço militar reflete, ainda que de maneira muito distante, o cuidado do jovem poeta com a sua autonomia, que o levara a escrever em carta de 2 de novembro de 1870: “Obstino-me terrivelmente em adorar a liberdade livre”.

Do mesmo modo que os cabalistas, Rimbaud via-se como um exilado do cosmos, a antítese perfeita do cidadão do mundo pensado pelos filósofos estóicos. Dono de uma sensibilidade suscetível agravada pelo sentimento de orfandade que o acompanhou a vida toda — o pai que abandonou a família, a mãe avarenta e impositiva, o amante Verlaine infantil e indeciso —, Rimbaud acabou por maximizar sua solidão, dando-lhe contornos cósmicos. Se na juventude ele já sabia estar exilado na própria pátria graças à imbecilidade da turba com que era obrigado a conviver (carta de 25 de agosto de 1870), as freqüentes viagens pela Europa e pela África — marca de um deslocado, de um fugitivo — só lhe aumentaram a sensação de não pertencer a lugar nenhum, de ser um Outro, de estar destinado, sempre e sempre, ao abandono completo. Isso foi notado por sua irmã, que se tem o demérito de ter tentado construir uma falsa imagem conservadora e católica de Rimbaud após sua morte, por outro lado possui o mérito de ter compreendido profundamente a solidão essencial que marcou a vida de Rimbaud. Na última das cartas de Marselha, talvez respondendo a perguntas da mãe do poeta sobre o dinheiro que o morto iria legar-lhe, Isabelle desencoraja-a a esperar qualquer vintém, eis que tudo fora gasto na longa internação do irmão e em seu enterro, acrescentando, em tom ousado e digno de uma irmã de Rimbaud: “O que fiz por ele não foi por ganância, mas por ser meu irmão, e, abandonado pelo universo inteiro, não quis deixá-lo morrer sozinho e sem socorro” (28 de outubro de 1891). Nesta aguda percepção — “abandonado pelo universo inteiro” — se cifra o destino que é de Arthur Rimbaud, mas que também é nosso.

Andityas Soares de Moura

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Poemas de Andityas Soares de Moura na REVISTA DAS LETRAS da Galiza

http://www.elcorreogallego.es/indexSuplementos.php?idMenu=55&idNoticia=621104