domingo, 28 de março de 2010

Entre a retórica e a ética

Acaba de ser lançado pela Editora Crisálida o estudo Rompendo o silêncio: a construção do discurso oratório em Quintiliano, de Antônio Martinez de Rezende.


Marcus Fabius Quintilianus nasceu na província da Hispania por volta do ano 35 da era comum, tendo vivido em um dos momentos mais instáveis do Império fundado por Augusto. Já iam longe os dias de Cícero, quando era missão do orador denunciar os inimigos do povo romano. No novo Estado absolutista não havia lugar para a liberdade. O Imperador Domiciano se auto-intitulara censor perpetuus e nessa qualidade perseguia todos aqueles suspeitos de questionar sua autoridade. No entanto, Quintiliano – um ardente admirador de Cícero e da Velha República – não apenas escapou da sanha assassina de vários Imperadores, como também galgou altos postos no Estado, tendo sido cônsul sob Vespasiano e tutor de príncipes da Casa Imperial, além de ter dirigido uma escola pública de Retórica em Roma, da qual foram alunos Plínio, o jovem, e possivelmente Tácito. Como Quintiliano conseguiu realizar tais façanhas? Talvez a resposta esteja na sua obra Institutio Oratoria. Nela Quintiliano enfatiza os aspectos técnicos de uma disciplina que parecia não ter utilidade num Estado em que se ouvia uma única voz: a do Imperador. Todavia, isso é só a superfície do texto plural de Quintiliano. Se soubermos ouvir a sua voz – a tal nos convida o Professor Doutor Antônio Martinez de Rezende –, descobriremos, para além dos aspectos técnicos do tratado, o profundo compromisso de Quintiliano com a educação, pois formar um bom orador significa formar um bom homem. Nessa mesma linha, a aposta de Quintiliano em uma elocução clara e desprovida de ornamentação pode ser lida como um desafio à época, na qual a linguagem floreada da moda servia somente para a lisonja do Imperador – pensemos aqui em Sêneca, preceptor do jovem Nero – e não para a busca da verdade. Muitos acusam Quintiliano de construir quimeras ao propor o ideal humanista do perfeito orador, a um só tempo virtuoso e competente em sua arte e, por isso mesmo, impensável na nossa realidade mesquinha. Respondamo-los: a utopia não é um modo de chegar, mas sim de continuar caminhando. Num universo que tende para o caos, não é pequena a aventura daqueles que tentam fundar a ordem em meio à desordem, ou, falando em termos gregos, revelar a verdade que se esconde nas dobras da aparência. Separados por cerca de vinte séculos, dois desses aventureiros agora se encontram neste livro: Quintiliano e Antônio Martinez de Rezende, sobre quem muito poderia ser dito. Sua gentileza acadêmica e seu domínio completo da língua em que cantou Virgílio já são proverbiais. Enfatizo assim outra característica do Professor Martinez, que me espanta sempre que me deparo com seus textos e que não deixa de ser mais um ponto de contato com Quintiliano. Refiro-me à elegância e à singeleza da sua escrita, qualidades que raramente vão unidas no discurso acadêmico e que, não obstante, se mostram tão necessárias. Afinal, como ensinou Ortega y Gasset, a clareza é a cortesia do filósofo.

Andityas Soares de Moura